Palavras para Aldir

Penso que, além das orações, palavras gravadas possuem um poder transcendental, imortal. E escrevo para homenagear quem gravou suas palavras no papel, nos ouvidos e no coração de um povo, de um país. Assim como muitos, conheci Aldir antes de conhecê-lo. Havia algo diferenciado na alma das músicas que escutava, mas me perdia na emoção da voz de Elis, no coro verdadeiro do Quarteto ou no conjunto voz-violão de João. Pouco me atentava a quem havia escrito tão doces, precisas, Brasis palavras. A minha então ignorância é o retrato de uma desvalorização cultural sistêmica de um país que é exposto em suas aparências e oculto em suas essências. Até em seu momento de passagem, Aldir nos deixou essa mensagem, jogando em nossa cara que uma figura como ele necessitava dos apelos de familiares e companheiros para conseguir uma vaga em um hospital. Aldir foi levado por um vírus, potencializado, em sua pátria, pelos algozes, não de Aldir, mas da liberdade, da Democracia, do Brasil e da vida, tudo que ele tanto defendeu. Tudo que eles tanto destruíram. E destroem. Aldir resistiu, lutando com caneta e papel, a uma Ditadura, mas sucumbiu durante a segunda. Chorei sua ida.

Lembro bem que um dia uma conhecida trocava uma ideia musical comigo e disse ter um acervo de músicas compostas por Blanc. Já havia ouvido falar nele, mas estava longe de conhecê-lo. Das maravilhas modernas, a conhecida, que displicentemente não me recordo o nome, compartilhou suas músicas comigo através da nuvem. E, realmente, o céu é o local onde as letras de Aldir devem ficar guardadas. Descobri até o compositor-cantor, que emprestou sua voz rouca para alguns de seus grandes sucessos escritos. Além de suas crônicas. Mas, nada como seus poemas musicais certeiros e diretos no coração do Brasil. Descobri o brasileiro que estava por trás de canções como "O Bêbado e a Equilibrista"; "Querelas do Brasil"; "O Mestre Sala dos Mares"; "Resposta ao Tempo"; "Incompatibilidade de Gênios"; entre outras. Só um gênio, mesmo, com uma sensibilidade ímpar, para escrever sobre amor, seu povo e sua pátria, traduzindo, em palavras, suas raízes. Quem, senão um apaixonado por sua terra, tem a habilidade de traduzir o colonialismo de seu país com duas frases como "O Brazil não conhece o Brasil. O Brasil nunca foi ao Brazil; O Brazil não merece o Brasil. O Brazil tá matando o Brasil"?

Só Aldir, com elegância popular e ironia perspicaz, após uma operação policial ilegal e vira lata (das muitas que tivemos recentemente) batizada com o nome de "O Bêbado e a Equilibrista", sua canção de exaltação aos exilados pela covarde e servil Ditadura, responderia, rechaçando a utilização de sua letra, acusando a casta sempre impune no país e sugerindo outro título de composição sua: "De Frente Pro Crime", retrato das ruas e comunidades brasileiras. Retrato da realidade brasileira.

Aldir é um patrimônio cultural histórico, em forma espiritual, do verdadeiro Brasil-brasileiro. O Brasil que não tem vergonha do Brasil. O brasileiro que ama suas imperfeições, suas cores, suas matas, seu chão, seus sotaques, seu gingado, sua liberdade, seu direito de andar de cabeça erguida e decidir o seu caminho. O Brasil que se respeita. Aldir é um Brasil soberano, independente, suburbano, carioca, com cara de gente. Com a cara da gente. Um brasileiro de verdade que nos contou e cantou, muitas vezes através de outros artistas brilhantes que, com suas vozes, fizeram jus a suas letras, o que é o Brasil de verdade.

Aldir Blanc. Azul, Verde e Amarelo.

Obrigado!
Gustavo Afonso

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